quarta-feira, 2 de junho de 2010

A cor dos olhos - uma história de amor

A cor dos olhos

                                  


Á muito tempo atrás, numa pequena aldeia, de África viviam Fati e Issa.        

Fati estava a dormir numa esteira.Dormia sempre de barriga para baixo. Enquanto ela dormia Issa sonhava. Estava deitada de costas, a dormir tranquilamente na cabana da mãe.



Numa linda manhã, Fati convidou Issa para ir com ele à pesca, ao rio que passava perto da localidade.

-Issa, vens ou não pescar?                                           
                                                                                  

-Vou, mas… e se o peixe não morde?                           

-Ficamos à espera.

Partiram com ele à frente, como sempre.



Issa era cega e por isso, seguia-lhe os passos.



A mãe dela, como todas as mães da aldeia, era boa cozinheira. O pai conhecia os remédios contra as serpentes e outros animais venenosos.Mas nem o pai nem a mãe sabiam a cura para o mal da filha.Fati e Issa caminhavam,agora, juntos num estreito carreiro

Fati viu pássaros a dar reviravoltas perto das folhas de uma grande árvore.



Issa ouviu-os.



Tinha posto na cabeça um lenço para se proteger do Sol. Tal como Fati, sentia o sol a queimar-lhe os ombros como se estivesse numa grande fogueira.



Finalmente tinham chegado ao rio.



Fati preparou uma linha para Issa e outra para ele.



Deitaram-nas à água. Passou algum tempo.



Fati inclinou-se para Issa e murmurou-lhe, quase a morder-lhe a orelha:

-

Não te mexas, vou andar alguns passos.

-Porquê?

-O sol está muito forte. Talvez encontre uma arvore para ficarmos á sombra





Fati, com a linha entre os dedos, estava tão imóvel como uma velha termiteira, quando sentiu um abanão na mão. Quando sentiu o segundo abanão, foi como se estivesse à espera dele, precisamente naquele momento. Puxou com um gesto seco e, quando ouviu a água a salpicar, não teve dúvidas: era mesmo um peixe que tinha mordido o isco e que ela estava a pescar. Com cuidado, para não assustar nada nem ninguém, levantou-se, puxando sempre a linha com a mão.



Agarrou o pequeno peixe que dançava agarrado ao isco.



Disse em voz alta, para si própria: "É de certeza uma carpa, uma carpa pequena e linda."







Uma carpa que preferiria voltar para a água em vez de assar ao sol — respondeu-lhe uma voz.





És tu, Fati?





Não é o Fati ,sou eu ― respondeu-lhe a carpa.





Mas quem está a falar? ― perguntou Issa.

Não obteve resposta. Pensou que havia sonhado.



Com cuidado, tirou o peixe do isco.







Ufa, obrigado. Assim está melhor ― ouviu.





Mas de quem é esta voz que não conheço?





É minha. Sou a carpa que acabas de pescar, não vês?





Não. Tenho olhos mas não vejo. Sou cega.

A carpa, que era menos medrosa do que uma tartaruga e mais faladora do que qualquer outro añimal que eu alguma vez vi , continuou a falar.









Será que me podes dizer o teu nome, tu que me pescaste?



Issa.





Issa, se voltares a pôr-me na água do riacho, posso dar-te o mais belo dos presentes.



― Qual é o mais belo dos presentes?



― É o que quiseres… exactamente o que quiseres



― Não existe o mais belo dos presentes.





Issa, pôs-se a rir e disse ao peixe:



-

Pequeno peixe, podes ofender Deus com essas mentiras.

― Não estou a mentir. Este poder foi-me dado por Ele.



― Então faz-me ver o mundo com os meus dois olhos.



― O mundo inteiro?



―O mundo inteiro.



Sem pensar duas vezes, o pequeno peixe disse a Issa:



― Pega em duas das minhas escamas, e põe uma em cada olho.

―E depois?

―Depois, nada. É tudo. Verás o que quiseres ver.

Issa

pegou em duas escamas e fez o que a carpa lhe mandara. E de repente Issa começa a ver o mundo de verdade.Os seus dois olhos haviam tocado o mundo!

― Agora, podes ver quase tudo ― disse-lhe a carpa.



― Porquê "quase"?



― Podes ver tudo, excepto os teus olhos. Com os próprios olhos, ninguém pode ver os seus próprios olhos.



Issa

pôs o pequeno peixe no riacho e ele continuou a viver como um peixe na água.



Fati voltara. Aparentemente não encontrara nenhuma sombra freca.

Issa

, que nunca o tinha visto, viu-o aproximar-se.





Fati,

estou a reconhecer-te.





É lógico, porque me conheces.





Reconheço-te com os meus olhos, não apenas com os ouvidos!





Fati

tinha parado a dois passos de Issa.

Olhava-a bem de perto, e assim podia ver-lhe os olhos. Exclamou:





Mas o que é que se passa? Lavaste os olhos no céu?





E por que dizes isso?





Fati, os teus olhos estão azuis como o céu. Continuas negra mas tens os olhos cor do céu!

Fati contou-lhe tudo.



Quando chegaram à aldeia, Fati ficou espantada por ver um só mundo com os dois olhos.



No dia seguinte, de manhã, ouviram a aldeia a murmurar.





Fati que

continuava a dar-lhe a mão, escutou as vozes ao mesmo tempo que ela.



Viram uma pequena multidão a aproximar-se

Tinham a boca cheia de maldades e mentiras.

Gritavam.

A seguir, chegaram mais pessoas

da aldeia. Eram piores do que animais loucos e selvagens

Gritavam:





Bruxa!





Issa,

vai-te embora!





Não passas de uma bastarda do céu!





Bruxa azul! Deixa-nos, vai-te embora para sempre, tu e os teus olhos azuis!





Excremento de abutre!

Puseram-se a atirar-lhe pedras e Issa

não encontrou outra solução senão fugir.Fati,

que tentara defendê-la, teve de fazer o mesmo.

Depois de uma longa corrida, chegaram ao fundo, ao fim do fim, um pouco mais longe do que o horizonte.







Issa gosto muito de ti.





Não tens medo dos meus olhos?

― Issa eu gosto de ti. É a única coisa que importa.



Tinham-se sentado frente a frente, à sombra de uma grande e velha arvore.





Issa perguntou:





Será que fechando os olhos, acabamos com a maldade?





Não… não se acaba com nada. Se fechares os olhos, não acabas com nada. Só foges dos probelmas.

Calaram-se. Issa tomou as mãos de Fati nas suas. Issa

tinha dois olhos para ver e chorar. Murmurou-lhe:





Eles têm medo. Estão cativos do medo que têm, e o medo faz esquecer o coração…

Nesse dia, nesse tempo, que se parecia muito com o tempo de hoje, Fati e Issa tinham o coração ferido como uma velha carcaça.



Levantaram-se e afastaram-se ainda mais da aldeia, talvez para encontrar algo mais além...

Muitas estações das chuvas deram lugar a muitas estações secas.

E ontem, na aldeia, um grande pássaro negro pousou na bela árvore vermelha florida. Era um calau.



Um calau negro de olhos azuis. Sim, negro de olhos azuis! Todos o acharam belo.



Este calau era um sinal. Logo que parou na grande árvore da aldeia, Fati e Issa chegaram.



Fati sorria tal como Issa. Foi ele

quem disse:





Bom dia, estávamos tão longe há tanto tempo… eis-nos aqui, os dois.





Bom dia!





Bom dia…

Foram muitos os que lhes ofereceram a água das boas-vindas. Pediram-lhes desculpa.



No dia seguinte, Fati

começou a construir a cabana deles. Surgia um grande romance.

Tal como acontecera com os pais deles, foi na sua aldeia que tiveram os filhos.



E foi assim.

Foi quimbanda quem mo disse.



Adpatado de:



Yves Pinguilly, Florence Koenig

                                                                                           

La couleur des yeux



Autrement Jeunesse, 2001

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